Anália Sória
Batista, 28/01/2003
As práticas
sociais que envolvem humilhação, perseguição, rebaixamento, ameaças
sistemáticas, enfim, o denominado Assédio Moral, caracterizam cada vez mais os
modos de relacionamento entre os “disciplinadores” e os obrigados à obediência
nos locais de trabalho. No contexto da reestruturação do capital, os
trabalhadores tornam-se frágeis, propensos a sofrer violência psicológica
estimulada por um superpoder empresarial, decidido a torná-los máquinas
produtivas, invocando, por meio de práticas de controle e de vulnerabilização,
o direito à posse do corpo e da alma do coletivo que produz.
Incrementam as
queixas sobre práticas de humilhação, perseguição e ameaças nos locais de
trabalho, que permitem considerar o terror psicológico como um aspecto
constitutivo das novas formas de gestão nas organizações, isto é, das relações
sociais nas empresas. Hirigoyen (1993) nomeou essa realidade como assédio
moral, mostrando a necessidade de identificação desses relacionamentos
altamente destrutivos e violentos, mas cada vez mais presentes, embora
dissimulados, nas organizações. O triunfo espetacular desse poder se faz
presente nas emoções, sentimentos e nos corpos maltratados dos trabalhadores,
assim como na vingança da eliminação (demissão) do trabalhador pouco obediente
ou considerado inútil devido a seus registros sócio-culturais avaliados como
sendo “inadequados”.
Uma pesquisa
realizada durante o ano de 2001 junto a 301 trabalhadores entre os que recorrem
à Delegacia Regional de Trabalho-DRT/DF, mostrou a importância atual desse
fenômeno. Trabalhadores e trabalhadoras foram chamados a responder sobre a
vivência de diversas situações que caracterizam o Assédio Moral nas
organizações. A importância desse fenômeno reflete-se nos dados a seguir:
No seu
trabalho, você já
|
%
|
Discordou dos
superiores
|
65,4
|
Já se sentiu
pressionado para produzir mais
|
61,7
|
Sentiu-se
controlado
|
47,5
|
Discutiu com
colegas
|
44,9
|
Já sentiu medo
|
37,2
|
Sentiu-se
perseguido
|
35,8
|
Enfrentou
Superiores
|
33,9
|
Foi relegado a
funções inferiores
|
30,7
|
Já foi
humilhado
|
29,4
|
Já se sentiu
menosprezado
|
25,1
|
Já se sentiu
rebaixado
|
20,4
|
Foi alvo de
Violências
|
14,9
|
Uma primeira
observação é que os trabalhadores parecem não reconhecer o termo síntese
“violência” para designar o “terror psicológico” nas organizações. Em razão
disso, menos de 20% afirmam ter sido alvo de algum tipo de “violência” no
cotidiano de trabalho. No entanto, quando o fenômeno da violência é desagregado
em seus componentes, o reconhecimento dos trabalhadores com relação a
diferentes situações de Assédio Moral se incrementa substantivamente.
Mais de 60% dos
trabalhadores e trabalhadoras reconhecem discordar com superiores. Esse dado é
importante enquanto indício de conflitividade latente nas relações sociais que
envolvem hierarquias no espaço de trabalho. Essa conflitividade latente pode
traduzir-se em climas organizacionais tensos. Já a situação de enfrentamento
com superiores, que efetivamente anuncia a presença do conflito, cai quase pela
metade, embora continue sendo relevante.
Com relação aos
relacionamentos entre colegas, observa-se que estes não são pacíficos; mais de
40% dos trabalhadores e trabalhadoras admitem se envolver em disputas com
colegas de trabalho.
Observa-se
também que mais de 60% dos trabalhadores/as sentem-se pressionados a produzir
mais e que praticamente 50% deles sentem-se controlados. As estratégias de
controle implementadas no mundo do trabalho e da produção visam todas elas ao
incremento da produtividade dos trabalhadores.
Vítimas do medo
e da perseguição resultam ser mais de 35% dos entrevistados. Destaca-se também
que aproximadamente 30% dos trabalhadores/as foram relegados a funções
inferiores e sentiram-se humilhados pelos seus superiores. O menosprezo e o
rebaixamento afetam a mais de 20% dos trabalhadores/as.
Há aspectos,
tais como ser menosprezado, humilhado e rebaixado no trabalho, que denunciam a
permanência de relações sociais fortemente hierarquizadas. O
reconhecimento/experiência em nível mais elevado de violências, tais como
pressão, controle, perseguição e medo, permite refletir sobre as condições
atuais de intensificação do trabalho e as estratégias gerenciais “de guerra”
para conseguir esse disciplinamento dos trabalhadores.
A
conflitualidade e a violência nas relações interpessoais nos locais de trabalho
associam-se também a certas características da sociedade brasileira, tais como
a presença de relações sociais baseadas em poderes e hierarquias extremamente
demarcadas, produzidas e reproduzidas com base em preconceitos, principalmente
socioeconômicos. Quando isso se combina com a crise do emprego e as
“estratégias de guerra” empregadas por gestores/administradores - feitores de
escravos - o local de trabalho transforma-se no espaço do conflito e da
violência.
O “poder do
soberano” (empresa) cola-se pelos espaços institucionais transformando os
redutos da produção em locais cada vez mais injustos e violentos. Tem-se
consciência da violência travestida no assédio moral e na discriminação. Mas a
modernização destrói as antigas identidades fundadas pelo lugar ocupado nas
relações sociais de produção. Esse definhamento identitário acaba, não poucas
vezes, transformando vítimas em algozes. Não são poucos os “trabalhadores”, já
não mais mencionados desse modo, mas agora chamados de “colaboradores”, que
ajudam efetivamente a disseminar a estratégia de submissão e eliminação
comandada por esse superpoder.
Mas também se tem
consciência desse processo porque o corpo e a alma não podem ser silenciados.
As pessoas adoecem devido ao incremento da violência nos locais de trabalho.
Quem sofreu, já sabe. A exploração do trabalho pode ser pura violência e
constrangimento moral, levantam-se vozes provenientes de diversos lugares do
mundo. Cada vez menos é possível associar trabalho e prazer.
Segundo os dados
analisados, o Assédio Moral não parece depender da idade nem da cor/raça dos
trabalhadores/trabalhadoras. Não existem diferenças significativas entre homens
e mulheres quanto ao reconhecimento de serem alvo de violências no local de
trabalho. Porém, há alguns tipos de violências influenciadas pelo gênero. O
controle atinge mais aos homens e a humilhação às mulheres. Veja as tabelas:
O psiquiatra
José Manoel Bertolote, responsável desde 1989 pelo controle das doenças mentais
da Organização Internacional do Trabalho - OIT, perguntado, em recente
entrevista, se o trabalho maltrata as mulheres, respondeu: “as pessoas só
prestam atenção ao assédio sexual, mais o fenômeno mais sério e corriqueiro que
[acomete a maioria das mulheres trabalhadoras] é o assédio burocrático. Ele
também representa uma violência. A mulher é maltratada pelo patrão e submete-se
a maior carga de trabalho.”
Dentro do grupo
das mulheres, aspectos tais como idade, raça/cor, estado civil, escolaridade e
situação de trabalho não influenciam de forma significativa no fenômeno do
Assédio Moral.
A violência no
local de trabalho remete a uma crescente vulnerabilização dos trabalhadores,
compreendida em função da crise do emprego, das exigências cada vez mais
elevadas de educação e complexas de qualificação e da desregulamentação. Quanto
menos educado formalmente e qualificado é o trabalhador, terá maiores
possibilidades de tornar-se alvo da violência dos outros no local de trabalho.
Sua fragilidade resulta, em parte, do fato dele ser tido como uma peça
substituível.
A ausência de
poder fundado no coletivo dos trabalhadores, que provém da crise sindical, e a
ausência de poder do próprio indivíduo, relegado no sentido da apropriação de
bens sociais e culturais, tais como a qualificação e a formação, desenham as
possibilidades de eliminação, traduzidas na perseguição, controle e ser
relegado a funções inferiores.
Isto também
acontece com aqueles trabalhadores considerados “residuais” nas diversas
categorias. Em cada uma delas há membros considerados “puros”, que contribuem
bastante à reprodução do status quo, e outros configurados como “detritos”. As
forças de um novo ciclo de modernidade se fazem presentes comandando o processo
do expurgo. Como marionetes, os homens investem-se de pureza e investem-se de
impureza. Os antigos puros jazem degradados, percebendo, no momento fatal,
serem alvos de uma nova e violenta classificação que os coloca fora da ordem
das coisas: a precariedade cada vez maior das posições conquistadas, a
futilidade do sucesso, a volatilidade do poder, a transportabilidade das
hierarquias.
A pesquisa
mostrou que os trabalhadores/trabalhadoras menos escolarizados são mais
vulneráveis a situações de perseguição no trabalho, a ser relegados a funções
inferiores e controlados, como mostram os dados a seguir:
Mas os
trabalhadores/as mais qualificados não estão a salvo deste arsenal de meios
para o exercício da violência psicológica. Numa sociedade cujos estratos
sociais menos penalizados agitam a “filosofia” do “salve-se quem puder”,
trabalhadores membros de categorias profissionais pouco propensas à
participação ativa na defesa dos interesses enquanto trabalhadores reconhecem,
muito mais que os menos escolarizados, experimentar um cotidiano tenso e
conflituoso. Conflitos envolvendo o enfrentamento com superiores são situações
que parecem atingir mais aos trabalhadores com maiores níveis educativos, como
mostram os dados a seguir:
Conflitos entre
chefes e subordinados são uma das maiores causas de stress entre os
trabalhadores. Esta é uma das conclusões de um dos maiores estudos já
realizados sobre stress no trabalho, coordenado pela americana ISMA -
International Stress Management Association.
Resta-nos
perguntar se é possível alguma proteção em face da brutal sutileza da violência
instituída nos locais de trabalho, amparada, quando dirigida aos
trabalhadores/as mais qualificados, no discurso sobre a autonomia, liberdade,
criatividade, independência, empreendedorismo; valores que desgarram com novas
classificações o coletivo dos trabalhadores. Valores que instituem novos
poderes e hierarquias, que se oferecem como novas fontes de preconceitos e
discriminações e como potenciais sinalizadores do “local” de exercício da
violência, quando os trabalhadores não conseguem responder a essas exigências.
As instituições
da lei têm feito eco acerca desse problema. As DRT’s já possuem Núcleos para o
combate à discriminação no trabalho, mas trata-se de um fenômeno tão recente
que é impossível avaliá-lo. Recentemente, o Congresso acrescentou o artigo
136-A ao Decreto-lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Código Penal
Brasileiro, instituindo o crime de Assédio Moral no trabalho. No artigo 136-A pode
ser lido: “Depreciar de qualquer forma reiteradamente a imagem ou o desempenho
do servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica
funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo,
colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica. Pena-detenção de
um a dois anos”.
Nesta sociedade
quem discrimina ou assedia moralmente é considerado criminoso. Isso significa
que carregará a repulsa severa do coletivo; que será isolado temporariamente do
convívio social. Aquele que seja alvo da violência da discriminação/assédio
moral no local de trabalho poderá finalmente fazer valer seu direito a ser
aceito, apesar de sua “excentricidade” ou impureza. Resta saber se a
criminalização do assédio moral permitirá efetivamente enfrentar esses
problemas quando acontecem no local de trabalho e são mediados pelas
hierarquias e poderes específicos que circulam nesses perigosos recintos.
A sociedade dos
que mandam exercita seus próprios valores. Ainda não chegou o momento de igualar,
no sentido da repulsa coletiva, a morte física à morte psicológica. Ao corpo nu
e esfaqueado, baleado, estrangulado contrapõe-se o corpo nu sensualizado ou
erotizado. Ao terror da morte contrapõe-se o glamour da vida construída
imageticamente. O “outro” aparece nas fronteiras de seu próprio corpo. Um corpo
tenso e bem desenhado “gritando” seu lugar na geografia, mistificando, isto é,
tornando matéria pura, pó divino, a inascível presença do eu. Sua destruição
apaga o indivíduo. Mas a destruição da alma é quase sempre incapaz de deslocar
o corpo. A morte comparece como real e verdadeira no primeiro caso; tem-se os
vestígios do sangue, a fria e pálida pele, os olhos e lábios azulados. No
segundo caso, a morte, sorrateira, oculta-se nos labirintos de um corpo ainda
jorrando vida.
O Assédio Moral
configura-se como um fenômeno característico de nosso tempo. Não porque as
práticas sociais que o identificam não tenham existido num outro momento
histórico, mas sem porque atualmente elas podem ser mencionadas como “assédio
moral”, têm sido criminalizadas pela sociedade e também porque assiste-se a um
processo de vulnerabilização dos trabalhadores no contexto da reestruturação do
capital, o que sem dúvidas contribui a exacerbar essas práticas no trabalho.
A pesquisa realizada
mostrou que a formação/qualificação dos trabalhadores/trabalhadoras é um valor
central nas organizações orientadas à produção, gerando novas dinâmicas de
inclusão/exclusão da força de trabalho. A violência recai sobre aqueles que
manifestam déficit educacional. As práticas de persecução, controle e ser
relegado a funções inferiores infernizam a vida daqueles menos educados. Para
os trabalhadores com melhores níveis educativos o conflito assume a forma do
enfrentamento com os superiores, o que traduz a presença de formas de
resistência ativa perante a violência no mundo do trabalho.
Observou-se
também que homens e mulheres sofrem violências no trabalho, mas os homens são
mais propensos a sofrer controle, uma estratégia de dominação. As mulheres sofrem
mais com a humilhação, uma estratégia de opressão.
Destaca-se que o
Assédio Moral é fundamentalmente dirigido contra aqueles trabalhadores e
trabalhadoras que não se conformam ao padrão educativo maior atualmente exigido
pelas empresas. A idade, por exemplo, o fato de ser jovem demais ou velho
demais para o trabalho não tem incidência significativa no incremento do
Assédio Moral e inclusive a raça/cor, o fato de ser branco ou não branco, não
exacerbaria a violência no mundo do trabalho.
Pode-se pois
refletir que o nível educativo baixo dos trabalhadores/trabalhadoras, muito
mais do que a idade e a cor, tem considerável incidência no fenômeno do Assédio
Moral no mundo do trabalho.
Anália Sória
Batista é socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB),
professora do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB) e pesquisadora
do Laboratório de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília.
Os dados foram
coletados no marco de uma pesquisa mais abrangente realizada na Delegacia Regional
do Trabalho/DF e coordenada pelas professoras Lourdes Maria Bandeira do
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e Anália Sória Batista.
Fonte: www.diap.org.br